Menina Letrada
- 4 de dez. de 2023
- 2 min de leitura

Para a mãe não letrada, a menina já sabia ler desde muito nova. Ela já lia alegria quando os passarinhos cantavam através da mãe inspirada depois de uma noite de amor. Lia tristeza quando via chuva no rosto da mãe depois de uma discussão em silêncio com o pai. Lia dor antes mesmo antes do anúncio da morte da avó. Lia amor quando se recolheu assim como o oceano antes do tsunami ao ver seu colega de sala. Lia falta de sentido na água parada da lagoa assim como continuar pedalando após ter aprendido a andar de bicicleta. Lia vergonha ao sentir-se uma estrela cadente quando se esqueceu da coreografia do balé em cima do palco. Lia rejeição ao se sentir caroço de fruta quando os primos a deixavam de fora de uma rodada de piadas pesadas. Lia ferida na alma quando sentiu o cheiro amargo de saber que era só. Lia saudade como se ela fosse o lenço abanado na despedida no último dia de aula.
A menina desde sempre lia o mundo do jeito que ele se escrevia diante dela.
A mãe lhe questionava de onde vinha tantas ideias e tantas palavras que geralmente as crianças não sabiam. Mas a menina não tinha resposta e lia dúvida na testa enrugada da mãe. Do pai, vinha o grito lá de dentro: "loucura, Maria." E a menina lia ignorância do pai e a vontade de vencer de dentro dela brotava. Pegava um lápis mastigado mais um papel de pão e ia desenhar o mundo que lia. Desenhava solidão mais gratitude e do seu jeito um mundo onde havia compreensão entre as pessoas. Guardava o papel para si mesma, pois ali ninguém era capaz de ler o que ela já lia. Ninguém sabia o seu alfabeto.
Isso tudo aconteceu antes mesmo de ela ler o mundo letrado de verdade, de explorar o dicionário em busca das palavras que melhor traduzissem o que sentia. Parece que nenhuma delas servia, e de sinônimo em sinônimo ela vivia lendo o mundo do jeito que ela sempre fazia. A menina cresceu, e a mulher na qual se tornou insistiu em manter em seu olhar a leitura própria do mundo, conforme ela o via. Criou estórias, misturou-se em seus enredos e manteve para si mesma aquilo que todos tentavam enxergar para além das suas palavras. Razões, inspirações, respostas, isso tudo ela não exibiu, pois era dali, onde ela nem sabe o nome, que vinha sua motivação.
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